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Pequeno contributo do “melhor ofício do mundo” para a literacia mediática

Atualizado: 23 de abr. de 2023



Texto: Fátima Lopes Cardoso

Foto: Ana Pinto


Irene Rodrigues completou 84 anos este mês de abril. Quando era criança, a mãe faleceu com um problema de coração e, com apenas oito anos, foi obrigada, por vicissitudes da vida, a ficar em casa para ajudar o pai a cuidar dos três irmãos mais novos, enquanto o progenitor trabalhava fora de casa para sustentar a família. Educou os irmãos como viu a sua mãe fazer, encheu-os de mimos e os três foram à escola. Irene foi a sacrificada e, hoje, em tom de brincadeira com o seu infortúnio, diz que, noutra reencarnação, ainda vai ser primeira-ministra de Portugal. Apesar de analfabeta, Irene Rodrigues sabe que o mundo tem 193 países reconhecidos pela ONU, está sempre atenta às notícias de rádio, que escuta enquanto completa os seus labores, e gosta de comentar os acontecimentos do mundo com as duas filhas, que lhe ligam quase diariamente de França e da África do Sul, para onde emigraram há anos, e a ajudam a compreender o que ouve na rádio e vê na televisão.


A história da infância de Irene Rodrigues pode retratar a de outro meio milhão de analfabetos que, por terem nascido no Portugal pobre da ditadura, onde poucos tinham acesso à educação, ficaram privados de um dos direitos mais fundamentais do ser humano: poder aceder à informação. Na primeira década do século XX, a taxa de analfabetismo, em contexto nacional, era de 75%; nos anos 70 ainda atingia os 25% e hoje é, segundo os Censos 2011, do Instituto Nacional de Estatística (INE), de 5%. Portugal continua a ser dos países da União Europeia com a taxa mais elevada de pessoas que não sabem ler. A maior parte é população idosa, mas 30 mil portugueses ainda se encontra em idade ativa.


Raul Almeida tem quase 15 anos, mas, na companhia dos pais, já viajou por mais de 20 dos 193 países que Irene Rodrigues sabe existirem. Tem três computadores, todos os jogos de vídeo da moda e acesso, em milésimos de segundo, à internet. Segue os youtubers mais controversos, mas que muitos dos adolescentes da sua idade acompanham. Mesmo com tão fácil acesso à informação e tendo pais com formação superior que lhe contextualizam o mundo em que vive, Raul Almeida não parece ter as ideias no lugar. Nas conversas, mostra-se zangado com o estado da política. Identifica-se com a ideologia racista, xenófoba e antidemocrática de algumas figuras de extrema-direita e garante já saber em quem irá votar na sua estreia enquanto eleitor. Gosta de ouvir notícias na televisão, mas prefere as polémicas pró-Trump e Bolsonaro que circulam na internet. Raul tem informação, é interessado por política e pelo mundo que o rodeia, mas o excesso de informação levou-o à desinformação.

Os pais tentam, no natural processo de educação, inverter a tendência do filho para defender ideias antidemocráticas. No entanto, ele afiança que os colegas da sua idade também vão votar no Chega. Mais ou menos à direita, neste momento, sabe-se apenas, segundo um estudo recente da Universidade Católica do Porto para o Conselho Nacional de Juventude, que a tendência de voto em ideias mais conservadoras é de 20,4%.

Em idades e polos sociais opostos, Irene Rodrigues e Raul Almeida são, no entanto, a evidência humana dos motivos que tornam o debate sobre o tema da literacia mediática tão premente. São a prova que, tal como afirmou o ministro da Cultura, na sessão de abertura do Congresso, é mesmo urgente criar um Plano Nacional para a Literacia Mediática. Ter acesso a informação em excesso, sem filtro e capacidade de seleção pode levar ao ruído, à desinformação e ao retrocesso civilizacional que todos tememos. Os estudos de Michel Desmurget indicam que, pela primeira vez em muitos anos, o ser humano está a regredir em termos cognitivos e intelectuais. Na obra A Fábrica de Cretinos, o neurocientista francês é muito crítico da indústria de videojogos e redes sociais, que acredita estarem a transformar os jovens em acéfalos.

Os resultados das investigações de Desmurget são alarmantes. A ideia de que os novos meios tecnológicos estão a gerar nativos digitais e pessoas mais aptas a compreender a informação é, afinal, segundo o especialista, uma falácia. Cientes destes perigos e de que aumentar os níveis de literacia na população portuguesa é uma causa social importante, determinante também para melhorar o próprio exercício profissional, os alunos do 1ºano da licenciatura e um grupo de estudantes de mestrado em Jornalismo, da ESCS, aceitaram o desafio de formar uma redação num curto espaço de tempo e improvisar um jornal online sobre os momentos mais importantes do evento.

Notícias das sessões, entrevistas, reportagens e crónicas nascem no mesmo instante em que a informação ainda está presente na memória. Enquanto decorre o Congresso, aplicam o que aprenderam nas várias unidades curriculares dos cursos através da elaboração de um conjunto de textos que se apresenta neste pequeno Jornal ESCS, mas que pode ser o embrião de algo muito maior. Haja vontade para entender e informar, para ajudar os outros a compreender o mundo e, sobretudo, para defender a profissão que o prémio Nobel da Literatura Gabriel García Márquez classificou como “o melhor ofício do mundo”.


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